Embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, deixa o Planalto
após reunião sobre denúncia de espionagem
Não é exatamente a agenda que Brasil e Estados Unidos
pretendiam enfatizar, a apenas três meses da visita com honras de Estado que a
presidente Dilma Rousseff fará a Washington, em outubro.
Mas as denúncias de que a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em
inglês) coletou milhões – possivelmente bilhões – de dados de ligações e e-mails
trocados no Brasil passam e ter destaque nas preocupações bilaterais após serem
reveladas pelo jornal O Globo no domingo.
Analistas no Brasil e nos Estados Unidos não esperam que o caso reverta a
"lua de mel" bilateral que culminaria, no plano simbólico, com a visita de
Dilma. Mas deveria obrigar os Estados Unidos a "reconquistar", na visão de
outros analistas, a confiança de países aliados abalada pelos escândalos.
"É uma denúncia gravíssima e que o governo está tratando com muita seriedade.
Mas não creio que vá chegar a comprometer as relações diplomáticas entre Brasil
e Estados Unidos", disse à BBC Brasil o professor de Relações Internacionais da
PUC-SP Geraldo Zahran.
"O problema é que pode haver algum confronto de prioridades entre os dois
países, já que esse não é um assunto de prioridade para os Estados Unidos . Tudo
vai depender das conversas entre os governos nos próximos dias."
Para o diretor do Brazil Instituto, do Wilson Center, Paulo Sotero, ainda é
cedo para avaliar o efeito das alegações, já que Brasil e Estados Unidos ainda
estão na fase de trocar esclarecimentos.
"É óbvio, porém, que a curto prazo, os fatos alegados introduzem um tópico
claramente negativo numa agenda ainda rala e em busca de engajamentos
positivos", diz Sotero.
"Entendimentos ou acordos que envolvam compartilhamento de informações, como
por exemplo a inclusão de brasileiros num programa piloto do Global Entry,
oferecida por Washington, ficam obviamente mais difíceis, se é que eram
viáveis."
'Contaminação'
O próprio Itamaraty diz que não trabalha com a hipótese de "contaminação" de
outros temas da agenda bilateral pelas denúncias. Enquanto as explicações
requisitadas junto ao governo americano não forem recebidas e analisadas, o
Ministério disse que não irá fazer conjecturas sobre o tema.
Na segunda-feira, em Belo Horizonte, o ministro das Relações Exteriores,
Antonio Patriota, elogiou o que descreveu como "disposição para o diálogo" por
parte do governo americano.
Na segunda-feira, o embaixador americano no Brasil, Thomas Shannon, se
encontrou com o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Segundo
correspondentes, Shannon criticou as reportagens de O Globo por
"apresentar uma imagem do nosso programa (de monitoramento das comunicações) que
não é correta".
"O Brasil sempre caminhou sobre a linha fina
entre ser um aliado dos EUA e pressionar contra os EUA e a Europa em instâncias
internacionais. E sob o governo do PT, conseguiu reafirmar a sua autonomia sem
ir tão longe quanto os países da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas)
"
Matthew Taylor, especialista em temas brasileiros da American
University
Mais tarde, Paulo Bernardo disse que Shannon havia negado que os Estados
Unidos tenham monitorado ligações e dados de internet no Brasil.
"Ele negou que haja esse monitoramento aqui no Brasil, disse que nunca teve
essa central de dados aqui e também que não tem nenhum tipo de convênio com
empesas brasileiras para coletar dados em território brasileiro", disse o
ministro, em declarações reproduzidas na Agência Brasil.
Para o ministro, não há razão para que as denúncias azedem as relações entre
Brasil e Estados Unidos. "Nós vamos trabalhar com muita prudência e
tranquilidade".
"Acho que não tem motivo para isso. Por outro lado, temos que ser firmes e
exigir transparência. Somos países amigos, mas isso não elimina a necessidade de
exigirmos explicações."
Não faça o que eu faço
As declarações oficiais até agora confirmam a suspeita de analistas para quem
o escândalo levará o Brasil a subir o tom contra os Estados Unidos nas
instâncias relevantes, mas evitando se confundir com países como a Venezuela,
Nicarágua, Bolívia e Cuba, que ofereceram asilo ao homem que revelou o programa
secreto, o ex-agente da CIA Edward Snowden.
"O Brasil sempre caminhou sobre a linha fina entre ser um aliado dos Estados
Unidos e pressionar contra os Estados Unidos e a Europa em instâncias
internacionais. E sob o governo do PT, conseguiu reafirmar a sua autonomia sem
ir tão longe quanto os países da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas)",
disse à BBC Brasil um especialista em temas brasileiros da American University,
em Washington, Matthew Taylor.
"Acredito que isso vai continuar. Muito dessa negociação ocorrerá a portas
fechadas e o Brasil deve fazer reprimendas nas instâncias internacionais. Isto
(o escândalo) abala a lua de mel, mas não levará a uma separação", compara.
Taylor observa a "ironia" de Brasil e Estados Unidos integrarem um diálogo
global sobre transparência governamental e diz que as revelações sobre o alcance
da espionagem americana – não apenas no Brasil, mas no mundo – é um "golpe para
o prestígio americano" nesse tema.
"Nos últimos três ou quatro anos, o vazamento de informações por parte do
site WikiLeaks, e agora Snowden, passa a impressão de que o comportamento dos
Estados Unidos não está de acordo com o que prega", diz o especialista.
"Para a opinião pública brasileira, ficará a sensação de que os Estados
Unidos pedem mais democracia e transparência no mundo, e no entanto, veja como
se comportam!"
Legislação global
Após as denúncias, o Itamaraty prometeu levar o caso à União Internacional de
Telecomunicações (UIT), um órgão da ONU cujo objetivo é promover e aconselhar as
práticas internacionais para o setor.
Em nota, o Ministério disse que pretende lançar normas internacionais que
"protejam a privacidade dos cidadãos" e ao mesmo tempo "preserve a soberania de
todos os países".
Atualmente, a organização responsável por estabelecer as regras para o uso da
internet é o ICANN, com sede nos Estados Unidos. A entidade controla, por
exemplo, os nomes de domínios e distribui os números de Protocolos de Internet
(IPs).
Tentativas de democratizar o seu funcionamento não afastaram as acusações de
que do órgão permanece sob influência majoritária do governo americano.
"(Este caso) provavelmente levará a novas discussões sobre como tornar a
internet uma plataforma realmente internacional, em oposição a uma plataforma
controlada por alguns países desenvolvidos", disse Matthew Taylor.
Fonte: bbc